O MENINO EDUARDO, ASSASSINADO DURANTE OPERAÇÃO POLICIAL NA UPP DO COMPLEXO DO ALEMÃO, NO RIO DE JANEIRO: ELE TAMBÉM FOI "TIRANO SANGUINÁRIO"?
"Não julgueis", reza a cartilha dos "espíritas" que, em tese, pedem para que façamos caridade sem pedir nem medir condições ou pessoas. Mas o texto de uma das matérias de capa do Correio Espírita deste mês, sobre a migração de povos africanos à Europa, intitulada "Africanos retornam à sua pátria, a Europa", revela um "dedo acusador" que sugere uma visão racista:
"Agora, os invasores do pretérito aparecem reencarnados, no mesmo solo que pintaram de sangue, e com a roupagem física de africanos e tentam voltar às pátrias de origem, necessitando drasticamente de amparo, proteção e ajuda".
A negritude foi tratada sutilmente como um "castigo", enquanto povos negros em busca de trabalho e alguma prosperidade, fugindo de países em conflitos ou políticas ditatoriais, foram classificados de "antigos tiranos sanguinários", dentro do habitual julgamento de valor dos "sábios espíritas".
Presos a uma concepção etnocêntrica de África, como se fosse uma simples selva e um antro de dor e grosserias, os "espíritas" mal conseguem esconder a herança medieval do Catolicismo português, que sempre foi a base dessa doutrina. E despejaram esse juízo de valor com essa matéria que expressa o morde-e-assopra "espírita", de primeiro julgar para depois conceder ajuda.
Fica a impressão que os "espíritas" é que são os bons, os misericordiosos, os filantropos, enquanto os negros são os desgraçados, os antigos tiranos castigados pela "roupagem física de africanos", os condenados, os infelizes e os inferiorizados. Grande desrespeito ao povo negro, isso sim.
RASTEIROS PRECONCEITOS HISTORIOGRÁFICOS
Se, em vez de negros - ou, da mesma forma, índios, judeus, palestinos e curdos - , fossem brancos com a beleza romana retraduzida em fenótipos português, espanhol ou mesmo italiano, navegando em direção à Europa, os comentários dos "espíritas" seriam outros.
Não é preciso dizer que, em relação à navegação de Pedro Álvares Cabral e sua esquadra para o Brasil, em 1500, foi narrada pelo livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de Francisco Cândido Xavier (podem esquecer Humberto de Campos porque ele nunca iria escrever um livro recheado de bobagens como o assinado por Xavier) como se fosse um conto de fadas (!).
O livro, que se pretendia "revelador" quanto à missão do Brasil, e se autoproclamava uma obra "do mundo espiritual", reproduz os mais rasteiros preconceitos historiográficos vigentes no Brasil no ano de sua publicação (e presentes nos livros de História na época), 1938, que no exterior, porém, já estavam perdendo o valor.
A título de comparação, desde 1929, a Escola dos Annales, de Marc Bloch e Lucien Febvre, já mostrava abordagens bem mais coerentes, consistentes e instigantes sobre as tribos primitivas, reconhecendo nelas valores indiscutíveis de expressão cultural, organização política, educacional e social, em muitos aspectos de fazer os "civilizados" envergonharem de si mesmos.
O "dedo acusador" dos "espíritas" revela crueldades ocultas de Chico Xavier, que se preocupou em dizer que os milhares de vítimas da tragédia de um circo em Niterói, no ano de 1961, teriam sido "romanos sanguinários" que viveram na Gália séculos atrás, em clara contradição com a ideia do esquecimento e do perdão tanto pregado pelo "homem chamado Amor".
O "espiritismo" não entende de mediunidade, nunca realizou estudos sérios sobre Ciência Espírita, menosprezou o trabalho de Franz Mesmer e companhia, e só agora trabalhou um faz-de-conta mediúnico de supostas psicografias, e vem ainda a julgar quem foi quem nas vidas passadas. Antes fosse que não arriscassem um único palpite nesse sentido.
Os coitados dos negros, gente trabalhadora, que no caso dos navios europeus sofrem todo tipo de risco, serem chamados de "invasores sanguinários castigados pela roupagem africana" é de um humilhante preconceito racial, cometido por esse tabloide roustanguista que é o Correio Espírita.
Sim, porque esse julgamento de valor é a herança maior que os "espíritas" têm de Jean-Baptiste Roustaing, o advogado que contaminou a Doutrina Espírita de delírios religiosos de valor duvidoso, autor que o "movimento espírita" durante anos manifestou preferência absoluta e entusiasmada, em detrimento de Allan Kardec.
Graças a isso, os "espíritas" saem por aí dizendo que fulano foi sicrano em outra encarnação e existe até mesmo disputas sobre quem teria sido o fictício André Luiz na vida terrena: Osvaldo Cruz, Carlos Chagas, Miguel Couto, Faustino Esporel etc. Aceita-se até novas sugestões.
PARA OS "ESPÍRITAS", "A VÍTIMA É A CULPADA"
No caso das vítimas - os machistas brasileiros iriam gostar da ideia "espírita" de que "a vítima é a culpada" - , os "espíritas" vão logo dizendo que fulano foi tirano no século X etc. Um julgamento de valor que não traz proveito algum e acaba corrompendo a ideia de perdão com a ruptura do conselho da Doutrina Espírita sobre o esquecimento do passado.
Será que terão coragem de dizer que o menino Eduardo de Jesus Ferreira, mulato alegre e brincalhão que foi morto durante uma operação policial na favela do Alemão, no Rio de Janeiro, foi "tirano sanguinário do século X"? Que respeito se pode esperar de alguém que, com um discurso desdenhoso, diz que a vítima de um infortúnio assim sofreu porque foi tirano ou algoz em outra vida?
Quando são negros e pobres, quando são povos miseráveis procurando um lugar ao Sol, o "dedo acusador" dos "espíritas" vai logo adiantando: "eles foram tiranos da Idade Média". Como se o Brasil tivesse surgido como uma sucursal tardia do antigo impérío Romano-Bizantino, o que nada tem a ver.
O texto do Correio Espírita foi de um grande mau gosto. Ignora que a África não é só selva e dor, e que existem conflitos, tragédias, dramas, mas também alegrias, trabalho e muito progresso. Os negros, com toda a certeza, se sentiram ofendidos com a acusação leviana de terem sido "tiranos sanguinários" no passado.
E isso ainda mais vindo das mentes de quem só conhece mediunidade através de mensagens apócrifas vindas das mentes de supostos médiuns, que mal conseguem esconder a mesmice temática e narrativa em supostas psicografias, psicofonias e pictopsicografias atribuídas a diferentes autores espirituais.
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