O cenário político brasileiro e o cenário religioso do "movimento espírita" andam de mãos dadas. Observando, acima de tudo, que houve uma retomada ultraconservadora, já na formação do novo Congresso Nacional em 2015 e no projeto financista do ministro da Fazenda de Dilma Rousseff, Joaquim Levy e, mais tarde, as campanhas jurídica (Operação Lava Jato), midiática (jornalismo de guerra) e social (passeatas anti-PT), nota-se uma ânsia voraz, mais do que um apetite, uma gula em levar o Brasil para os padrões coloniais contrariando os avanços dos tempos.
No projeto político, temos o governo de Michel Temer que, nas melhores hipóteses, lembra o governo do general Ernesto Geisel caminhando para trás, não em direção à redemocratização e ao fim da ditadura, mas ao "milagre brasileiro" e ao endurecimento pelo AI-5. Mas seu projeto político, na medida em que incluem projetos que retrocedem os padrões trabalhistas aos tempos da República Velha, como a reforma trabalhista, que trará tanto a precarização do trabalho (as pessoas trabalharão mais e receberão menos salários) quanto a abertura das negociações trabalhistas, dando vantagem às decisões patronais, demonstra o quanto há gente querendo caminhar para trás e de maneira bastante acelerada.
E o que o "espiritismo" brasileiro faz com isso? Nada, a não ser mandar apelos, sempre com suas palavras bonitas, para os sofredores e desafortunados "aguentarem o sofrimento", "nunca reclamarem da vida", "suportarem as piores coisas com fé", "mudar seus desejos e habilidades" e "abrir mão de necessidades". Não bastasse isso, apelam ainda para "perdoar os algozes nos seus abusos e erros gravíssimos".
O que é isso? Isso em nenhum momento lembra Allan Kardec, por mais que os palestrantes "espíritas" brasileiros, que nunca assumem a raiz roustanguista, insistam no vínculo com o professor lionês. Nem se Michel Temer nomeasse um sacerdote católico mais ortodoxo para a CNBB, se tivesse direito a isso, esse religioso iria fazer apelos tão radicalmente conservadores.
Já se fala que o "espiritismo" está inclinado para a Teologia do Sofrimento, corrente medieval da Igreja Católica. Isso choca os "espíritas" médios, que vão para os "centros espíritas" ouvir palestras sorridentes e apresentações musicais adocicadas. Mas a identificação se dá com base em ideias, com base no que personalidades disseram, e Francisco Cândido Xavier demonstrou que a Teologia do Sofrimento virou a bússola do "movimento espírita", que de kardeciano só tem a fachada.
Chico Xavier dizia muitas vezes para as pessoas sofrerem "sem mostrar sofrimento", com suas palavras. Sua pregação ideológica sempre exaltava sofredores que viviam resignados e quietos. Como um "AI-5 do bem", Chico falava que o silêncio é a "voz da sabedoria". Por outro lado, o "bondoso médium" sempre amaldiçoava aqueles que reclamavam, tendo até um conto sobre uma queixosa - levianamente atribuído ao espírito de Humberto de Campos, mas a obra é de Chico Xavier, em parceria com Wantuil de Freitas, então presidente da FEB - que era abandonada pelas pessoas porque "reclamava da vida".
Isso é Teologia do Sofrimento, não tem como escapar. Não adianta lançar ideias relacionadas a uma ideologia nem sempre bem vista pela sociedade e dizer que não a segue. Recentemente, tivemos exemplos de pessoas de visão reacionária sobre cultura, comportamento e sociedade que, só para levar vantagem entre amigos e pessoas mais influentes, se diziam "esquerdistas" e disparavam falsas bajulações a Lula e Dilma Rousseff.
Da mesma forma, temos "espíritas" que pregam os ideais medievais trazidos por Jean-Baptiste Roustaing e adaptados ao contexto brasileiro por Chico Xavier, com o apoio entusiasmado de Divaldo Franco - outro roustanguista não-assumido - e no entanto bajulam de maneira hipócrita o professor lionês, fingindo "fidelidade absoluta" e "respeito rigoroso" aos postulados de Kardec.
Mas o conteúdo fala mais do que mil posturas que o contrariam na forma. E o conteúdo do "espiritismo" brasileiro, não bastasse o legado roustanguista que a fase dúbia (fase do "movimento espírita" em que se finge recuperar as bases doutrinárias originais, num falso equilíbrio entre "científicos" e "místicos", privilegiando estes) escondeu sob o tapete, revela algo bem pior: um projeto religioso de recuperação do Catolicismo jesuíta português, de fundamentos medievais.
É só comparar o que o projeto político de Michel Temer faz com o Brasil e o que quer o "movimento espírita" no seu conteúdo - esqueçam os desmentimentos, tão hipócritas ou tendenciosos, aqui e ali - e vemos todo um esforço em fazer o Brasil voltar, se possível, aos padrões anteriores a 1792.
No plano político, vemos a defesa da precarização do trabalho humano, com a desvalorização dos salários, o fim dos encargos e garantias trabalhistas, o fim da mediação das leis sobre os acordos trabalhistas, oferecendo vantagem aos patrões, o que faz muita gente dizer que o país está a caminho da revogação da Lei Áurea.
No plano econômico, vemos a defesa do congelamento de investimentos públicos, que irá sufocar as atividades de Educação, Saúde, Assistência e Previdência Sociais, Infraestrutura e outros setores de interesse da sociedade, ameaçando a qualidade de vida da população brasileira e, no caso dos hospitais públicos, ameaçando a vida de muitos cidadãos.
Fala-se, por outro lado, em avançar a privatização de empresas públicas, ameaçando ainda mais a sociedade com a redução drástica de serviços públicos e a entrega de boa parte deles à iniciativa privada - que quer acima de tudo lucro - e a entrega de riquezas brasileiras à exploração de corporações estrangeiras, sobretudo a reserva de petróleo no pré-sal, que lembra o nosso antigo pau-brasil (que inspirou o nome do nosso país), uma preciosidade a mais a ser entregue aos gringos.
E o que vemos, religiosamente, no "espiritismo", só para citar uma religião que se diz na "vanguarda" dos movimentos ditos espiritualistas? A religião que se autoproclama "moderna" e "futurista", como um suposto diferencial aos movimentos neopentecostais evangélicos, que buscam trazer os padrões morais do Velho Testamento. também mostra seu modelo retrógrado, a partir da ênfase de jesuítas como Emmanuel, que fazem com que os "espíritas" estejam mais interessados em recuperar valores do velho Catolicismo que o próprio Catolicismo hoje não aceita mais.
Daí o velho moralismo que é servido, como se dissolvesse em água com açúcar, em palavras bonitas dadas por palestrantes "espíritas" festejados. Um moralismo falsamente equilibrado, que usa a "vida futura" como troféu para quem sofrer mais, fazendo apologia ao sofrimento como nem os católicos ortodoxos conseguem fazer.
E o que isso significa? Significa que o "espiritismo", que sonha com uma supremacia teocrática - o projeto "Brasil Coração do Mundo e Pátria do Evangelho", renovado pela roupagem pseudo-futurista da "profecia da Data-Limite" de Chico Xavier - , também apela para a marcha-a-ré que vemos no governo Temer, e que reflete o zeitgeist ("espírito do tempo") de uma sociedade sedenta por retrocessos ultraconservadores.
Juntos, religião, política e economia traçam os fundamentos ultraconservadores que refletem um saudosismo bastante doentio em ver o Brasil voltando às velhas condições de colônia, subordinado não mais a Portugal, mas aos EUA, e limitado a ter um poder teocrático, seja ele evangélico ou "espírita". Já se fala em revogar o Dia da Consciência Negra e a Lei Áurea, num contexto em que reacionários despejam livremente comentários racistas. Daqui a pouco vão querer revogar o Dia da Independência, substituindo o Sete de Setembro pelo Quatro de Julho estadunidense. São tristes tempos de um Brasil louco para andar para trás, num saudosismo febril de tão doentio.
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