O caso da pediatra de Rondonópolis, interior do Mato Grosso, que se recusou a atender uma menina de sete anos que havia sofrido estupro, pode abrir um precedente para aprofundar os questionamentos sobre as contradições do "movimento espírita" no Brasil.
O episódio se deu no começo deste mês. Uma mãe levou sua filha para a consulta de uma pediatra e revelou que a menina, de sete anos, estava abalada e assustada porque havia sido vítima de estupro de seu próprio tio. Diante disso, a pediatra se recusou a atendê-la porque não queria lidar com pessoas com "problemas espirituais".
Alegando que "ninguém é vítima" de coisa alguma, a pediatra acusou a menina de ser culpada pelo estupro que sofreu, porque tinha uma "energia sexual" que puxou o tio para fazer sexo com ela e que a criança carregava esse "problemão" das "vidas passadas".
A mãe e a menina se sentiram ofendidas e a pediatra foi processada por danos morais, condenada a pagar uma multa de R$ 10 mil. A médica recorreu da sentença, mas pode também perder o registro profissional porque foi aberta uma sindicância para analisar sua conduta.
É um caso que rendeu um escândalo causado pela aplicação de uma "moral espírita", que investe em juízos de valor atribuindo, sem provas de qualquer espécie, encarnações passadas aos sofrimentos humanos, fazendo a apologia das desgraças humanas sob o pretexto da "purificação da alma".
O caso não é o único que resultou em condenação judicial. O médico Woyne Figner Sacchetin, de São José do Rio Preto, também foi condenado a indenizar familiares da vítima do acidente da TAM, ocorrido em São Paulo em 2007 e tendo matado 99 pessoas, além de retirar de circulação o livro O Voo da Esperança, de 2009, atribuído (levianamente) ao espírito de Alberto Santos Dumont.
A obra acusou as vítimas do acidente de terem sido um povo romano que sentia prazer em ver hereges sendo recolhidos das casas e jogados nas arenas dos estádios na Gália (atual França) para serem queimados. A encarnação atribuída era no século II.
Com semelhante acusação, o "médium" Francisco Cândido Xavier cometeu crueldades severas, contradizendo sua tão badalada imagem de "homem puro, misericordioso e humilde", através de um julgamento de valor que envolve uma série de erros gravíssimos sometidos pelo "santo homem".
No livro Cartas e Crônicas, lançado em 1966, enumera-se esses erros de alta gravidade, e que põem em xeque a tão alegada "pureza" do anti-médium mineiro (um mito, na verdade, fabricado pela grande mídia), pelos seguintes itens;
1) JUÍZO DE VALOR - Como deturpador, Chico Xavier atribuiu encarnações passadas às vítimas da tragédia de um circo em Niterói, no final de 1961, sem estudos sérios e de maneira a reforçar um juízo de valor moralista e severo. Da mesma forma que Woyne, atribuiu, com "dedo acusatório", as vítimas do incêndio no Gran Circo Norte-Americano de terem sido romanos da Gália que viveram no século II e que tinham prazer de assistir a hereges sendo queimados nos palcos das arenas.
2) OFENSA AOS HUMILDES - Chico Xavier, tão alardeado como a "personificação da humildade", lançou seu perverso juízo de valor contra pessoas humildes, se preocupando em atribuir "vidas passadas" para justificar a culpabilidade de pessoas indefesas e pobres que foram assistir a um alegre espetáculo circense. Chico fez o mesmo que Woyne, com o agravante que, pelo menos no caso em que gerou processo judicial, as vítimas do acidente com o avião eram gente abastada com dinheiro para mover advogados e arrancar processo judicial. No caso de Chico, nem isso.
3) FALTA DE MISERICÓRDIA - Chico Xavier, ao atribuir à tragédia dos humildes uma punição "reencarnacional" atribuída a uma época distante, se esqueceu de seus apelos de misericórdia e investiu na suposição, baseada na hipótese absurda dos "resgates coletivos" (indivíduos diferentes jogados, como "gado", para "pagar" um mesmo castigo), de que os humildes estavam "pagando pelo que teriam feito em outras vidas". Diante disso, até o Profeta Gentileza deu um banho de perdão e amor ao próximo, desbancando o "maior médium do Brasil".
4) ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE E OUTREM - Não bastasse o ridículo juízo de valor do moralista Chico Xavier, ele ainda botou a responsabilidade do livro a um autor morto, aproveitando que ele não estava vivo para reclamar. Chico queria se vingar de Humberto de Campos por causa de uma resenha irônica de Parnaso de Além-Túmulo que o autor maranhense cometeu em vida e resolveu usurpar a memória do autor, assim que este morreu em 1934. O caso rendeu um processo judicial, que deu em nada, e Chico, esperto que era, seduziu a saudosa mãe de Humberto, Ana de Campos, e depois o cético filho, com o mesmo nome do autor. Com a impunidade montada, Chico pôde abusar do prestígio de Humberto e botar na conta dele obras que este nunca escreveria.
O caso de Woyne só não abriu precedente para os questionamentos em torno das irregularidades do "movimento espírita" - que sofre uma gravíssima crise - porque a sua repercussão foi baixa. O caso da pediatra é que, com um pouco mais de repercussão, abre um precedente, até pela apologia ao estupro, um dos graves problemas sociais, que a recusa ao atendimento sugere.
A crise pode pôr fim oficialmente à tendência dúbia do "movimento espírita", um suposto equilíbrio institucional entre "místicos" e "científicos", fazendo voltar o roustanguismo implícito mas certeiro que se observa até nos "poetas alegres" que aparecem em certa página "espírita" portuguesa. A cada dia perde o sentido os "espíritas" fingirem recuperar as bases originais de Allan Kardec e praticar o igrejismo entusiasmado. Isso é a fonte de tantas contradições e criou as condições para que a pediatra cometesse o grave erro que cometeu.
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